terça-feira, 12 de julho de 2011

Poucas Palavras

Artur chegou da reunião com o Conselho Administrativo das fábricas ao cair da noite do dia seguinte. O tabelião estava à sua espera, e conversaram por um tempo razoável.
Assim que o visitante foi embora, Artur caminhou até o jardim. Moreira estava terminando de aguar as últimas plantas. Era sua segunda atribuição cuidar do jardim.
- E aí, como foi? – indagou Moreira.
- Decidi vender. Sei que não foi a decisão que meu pai tomaria. Mas foi a melhor. Não posso arriscar esta casa. Ela vale muito mais que o dinheiro. Cresci aqui. As poucas lembranças que guardo da minha mãe foram vividas entres estas paredes. Meu pai diz que ela costumava me ninar naquele balanço - disse apontando para o balanço que ficava bem no meio do jardim. - Nunca deixei que o tirassem.
- Eu o compreendo. E se quer saber, teria decidido o mesmo. Você fez a coisa certa.
- Obrigado por seu apoio. És um bom homem, Moreira.
- Pretende contar a seu pai?
- Irei mentir. Já está decidido. Se ele perguntar, e vai perguntar, direi que resolvemos pelo empréstimo.
- Acha que ele irá acreditar?
- Direi que percebemos que não será preciso tanto dinheiro para manter os negócios, e que, assim, poderemos fazer o empréstimo sem ter que oferecer a mansão como garantia. Resolvo dois problemas com uma mentira só.
- Para alguém que mal iniciou a carreira de empresário, você está me saindo melhor que a encomenda – Moreira e Artur deixaram escapar uma boa risada, em um raro instante de descontração depois de tantos reveses.
            Em seguida Artur subiu até o quarto do pai para ver se estava ainda acordado. Abriu a porta lentamente e aproximou-se do senhor Sanetto.
- Olá, filho – era a voz rouca e fraca daquele velho homem.
- Como o senhor está, pai?
- Pior que ontem, melhor que amanhã.
- Não fala assim.
- Vai me pedir para ter fé?
- Peço para não desistir.
- Não há porque lutar, meu filho. Você já é homem, pode seguir sozinho. Acho que esta doença serviu para que eu descobrisse isso. Fora você, nada mais importa. Nem mesmo as fábricas. Abri os olhos um pouco tarde para perceber, mas ainda houve tempo para que ao menos você soubesse.
            Artur foi surpreendido por aquelas palavras. Ditas por uma voz tão baixa, soaram tão alto. Não esperava ouvir aquilo. Sentia-se em último lugar nos planos de seu pai, e sempre pensou que as fábricas significavam mais para aquele velho homem que o filho que possuia.
- E a reunião, como foi? – perguntou o senhor Sanetto.
- Difícil. Mas acho que chegamos à solução ideal.
- Artur, se eu bem o conheço, sei que não teve coragem de fazer o empréstimo... – o senhor Sanetto pigarreou e prosseguiu – você não teria coragem de arriscar esta casa.
            Artur ficou mais tranqüilo por não precisar prosseguir com a mentira. Embora fosse uma circunstância especial, tinha receio de mentir para seu pai.
- Mas se pudesse me desfazer de tudo para que o senhor melhorasse, eu faria.
- Concentre-se naquilo que ainda pode mudar: você mesmo.
            O senhor Sanetto pareceu cansado, e sua voz estava ofegante. Artur não disse mais nada. Apenas segurou a mão do seu pai e ficou algum tempo ali, parado, refletindo sobre as palavras que ouvira. “Interessante como a proximidade da morte nos faz valorizar o que é realmente importante”, pensou.
            Artur desceu as escadas e foi novamente até o jardim. Mas Moreira não estava mais lá. Dona Aurélia, aproveitando o momento, aproximou-se de Artur para saber informações sobre o senhor Sanetto.
- Senhor Artur, desculpa incomodá-lo, mas como está seu pai?
- Mal – Artur respondeu sem olhar para dona Aurélia. Tinha a voz presa e os olhos embebidos de lágrimas. Esforçava-se para segurar o choro.
            Dona Aurélia percebeu que o rapaz não estava bem, e não sabia se tentava confortá-lo ou o deixava sozinho. Pensou em falar sobre Deus e fé, mas lembrou-se do ceticismo de Artur.
- Se você precisar de algo, sabe que pode contar comigo. Tenho você como um filho, e todos nesta casa lhe querem bem.
- Ele está morrendo... – as lágrimas começavam a correr pelo rosto de Artur. Aurélia aproximou-se e tocou carinhosamente seu braço.
- Seu pai é um homem forte, e sei que você também é. Mas todos nós sofremos, fortes ou fracos. No final, muitas vezes acabamos por entender o porque de algumas coisas que acontecem. E mesmo que não possamos compreender tudo, é possível continuar vivendo. Uma força brota dentro de nós e nos dá ânimo para prosseguir.
            Artur ficou algum tempo em silêncio, enquanto dona Aurélia carinhosamente acariciava seu braço.
- Se ao menos minha mãe ainda estivesse aqui - disse Artur, já um pouco mais contido.
- Ela estaria muito orgulhosa de você, pelo homem que se tornou. E seu pai também está, sem dúvida.
            Aurélia ficou um pouco mais com Artur e retirou-se para a cozinha. Artur ficou no jardim por quase uma hora. Às vezes caminhava por entre as plantas, e depois sentava-se no balanço. Ninguém mais ousou incomodá-lo.
            Os dias transcorriam lentamente, e o senhor Sanetto já não dizia praticamente palavra alguma. Às vezes reclamava de dor, ao que a enfermeira que o acompanhava dava-lhe uma dose maior de analgésicos. Alguns amigos da família e parentes distantes ligavam para saber notícias. Alguns intentavam visitas, mas, devido à debilidade física do senhor Sanetto, ficavam na sala, interrogando e tentando consolar Artur, que, por sinal, já estava cansado de dar as mesmas respostas e ouvir as mesmas palavras de consolo vazias de sentimento.
            Foi numa manhã calma e serena em que o senhor Sanetto morreu. Artur chorou por mais de meia hora sentado na cama, junto ao corpo pai. O velório ocorreu no salão de festas, na própria mansão. Era desejo do senhor Sanetto ser velado naquela casa, que com tanto esforço havia edificado.
            Ainda na tarde daquele dia ocorreu o sepultamento. Centenas de pessoas, entre convidados e curiosos, acompanharam a última despedida daquele que outrora fora um dos homens mais respeitados do Rio de Janeiro. Agora, era só mais um entre tantos mortos, distinguidos apenas por uma inscrição numa lápide.
            Artur voltou para casa no carro da família, dirigido por Moreira. Não conversaram absolutamente nada no caminho de volta. Tanto foi o silêncio que, ao chegarem à mansão, Artur perguntou a Moreira se estava tudo bem. E este lhe respondeu com a seguinte citação:
- “Tudo tem seu tempo determinado. Há tempo de estar calado, e tempo de falar”.
- Por isso não tentou me consolar, como todos os outros fizeram?
            Moreira voltou-se para Artur, sentado no banco detrás do carro, e respondeu-lhe:
- A única coisa que posso lhe oferecer agora é minha amizade. Compreendo sua dor. Já passei por isso mais de uma vez. E sei que não há nada que se possa dizer nesta hora. Tudo tem seu tempo determinado. Há tempo de sorrir, mas também há tempo de chorar.
- Essas foram as palavras mais razoáveis que ouvi nestes dias. Se você houvesse tido oportunidade de estudar nas escolas que estudei, poderia ter se tornado um escritor ou algo assim.
- Na verdade, as palavras não são minhas.
- E de quem são? Ah! Nem precisa responder, já sei. São da Bíblia.
Logo que saiu do carro, Artur foi até o balanço que ficava no jardim. Ficou sentado ali por um bom tempo, pensando nas palavras que ouvira de seu pai dias atrás, e no que Moreira lhe dissera no carro. Ambos falaram pouco, mas disseram muito.
Já havia tido muitas conversas com Moreira, e aprendido muito com seu amigo, mas jamais havia ouvido palavras tão profundas. Considerou firmemente a hipótese de que havia, de fato, tempo para tudo, e que certas dores não poderiam ser adiadas, disfarçadas ou encobertas. Em um vazio de explicações razoáveis para tantas tragédias, a única alternativa aceitável, embora longe de ser a mais fácil, parecia esta.
Lembrou-se também das tantas discussões que tivera com o senhor Sanetto. Quantas vezes falou-se tanto, mas não se disse nada que realmente importasse. Os últimos dias de vida do seu pai pareciam um novo começo, que embora tenha durado pouco, foi suficiente para sarar muitas feridas. E justamente quando menos seu pai falou, no leito de morte, talvez a pior circunstância possível, pareceu tão sábio.

sábado, 9 de julho de 2011

É Preciso Decidir

No dia seguinte pela manhã, Artur e Moreira tomaram o café oferecido pelo hotel e seguiram viagem de volta para o Rio de Janeiro. Artur estava cansado pela noite em claro e com o semblante abatido, e dormiu boa parte do caminho.
-         Não conte nada a ninguém, Moreira, por favor. Meu pai não pode saber do que ocorreu – disse Artur quando já se aproximavam da mansão.
-         De mim ninguém ouvirá uma única palavra sobre o que aconteceu. Não se preocupe. Mas seu pai é esperto. Estamos voltando uma semana antes do panejado... e se você visse sua cara.
-         Eu invento alguma coisa caso ele pergunte. Obrigado por tudo, meu amigo – Moreira respondeu com um aceno de cabeça.
Quando chegaram à mansão no Leblon, Artur pediu a Moreira que entrasse pela garagem do outro lado do quarteirão, raramente utilizada. Antigamente, quando o senhor Sanetto costumava organizar festas para políticos e empresários, era usada para a saída de carros.
-         Vou lavar meu rosto no chuveiro da piscina. Se meu pai estiver em casa, diga que entramos pelos fundos porque passamos antes na loja do outro lado da esquina, para comprar um lenço, e que esta era a entrada mais próxima.
            Alguns minutos mais tarde Artur entrou em casa pela porta dos fundos, e percebeu um semblante estranho no rosto de dona Aurélia e Moreira, que cochichavam na porta da cozinha que dava para a sala secundária.
-         Boa noite. Algum problema, Dona Aurélia? – perguntou Artur.
-         Seu pai pediu que o senhor subisse para falar com ele no quarto assim que chegasse.
-         Ele está melhor? – Aurélia não respondeu, mas sua reação à pergunta já dizia o suficiente.
            Artur subiu a escadaria correndo e foi até o quarto do pai. Bateu duas vezes e entrou. O senhor Sanetto estava deitado na cama, vestido com um pijama azul escuro e calçando meias. Um lençol cobria-lhe desde a cintura até os tornozelos. Pela primeira vez em sua vida Artur via seu pai tão indefeso e debilitado.
-         Pai? – O senhor Sanetto abriu levemente os olhos.
-         Olá, meu filho. Como foram as coisas em Minas?
-         Bem.
-         Por que já voltou? Pensei que fosse demorar alguns dias.
-         Porque me disseram que o senhor ainda estava doente – Artur sentou-se na cama, ao lado do pai.
-         Quem disse isso? Aurélia?
-         Sim.
-         Eu ordenei a ela que não lhe dissesse nada. Parece que nesta casa as governantas fazem o que bem querem.
-         A culpa não é dela. Eu insisti em saber. Não a demita por causa disso, por favor.
-         Depois conversaremos sobre isso.
-         O doutor Macedo já veio aqui ver o senhor?
-         Sim.
-         O que ele disse?
-         Artur, há algo de que você precisa saber – o senhor Sanetto esticou o braço direito e segurou uma das mãos de Artur. – Eu não vou ficar bom do que tenho.
-         Como assim, pai? O que o senhor tem?
-         Estou muito doente, meu filho. Você precisará seguir sozinho daqui para frente.
-         O que o senhor quer dizer com isso? Que vai morrer? – Artur viu uma lágrima escorrer pelo rosto do pai. – Foi isso que o doutor Macedo disse?
-         Na verdade, já faz algum tempo que estou doente. Não disse nada a você antes porque não queria preocupá-lo.
-         Mas há muitos outros médicos que podemos procurar.
-         Eu já fiz isso, Artur.
-         E o que o senhor tem?
-         É melhor que o doutor Macedo explique a você. Ele já deve estar chegando. Por hora, quero que faça algo para mim.
-         Pode dizer.
-         O telefone do tabelião está dentro da gaveta – o senhor Sanetto gesticulou suavemente com a cabeça apontando para o criado-mudo, sobre o qual havia meia-dúzia de caixas de remédios.
-         Tabelião?
-         Você sabe para quê, pois faz direito – Artur abriu a gaveta e retirou um pequeno cartão. - Quero que ligue para ele e peça que venha hoje à tarde.
-         O senhor deseja mais alguma coisa?
-         Sim. Quando descer, diga a Aurélia que me traga água e um copo de uísque.
-         Mas o senhor...
-         Um copo de uísque não será a causa da minha morte, nem abstinência o remédio que me curará.
            Artur fez como o pai havia pedido. Conversou um pouco com Moreira e subiu para seu quarto. Sentia-se inseguro com a possibilidade de ficar sem o pai. “Agora veio tudo de uma vez. Problemas e mais problemas” – pensou.
            Os dias se passavam lentamente. Celsinho e alguns outros amigos foram visitar Artur, tentar convencê-lo a sair de casa para distrair-se um pouco. Foi uma tentativa inútil, como outras feitas por Moreira. Artur parecia cada dia mais deprimido. Em parte por Amanda, em parte pelo pai. A grande verdade é que não tinha maturidade para lidar com aquele tipo de situação.
            Funcionários das fábricas iam todos os dias à mansão. Artur inteirava-se cada vez mais dos assuntos de seu pai, tentando dar continuidade aos negócios, que iam de mal a pior.
-         Lamento informar, senhor Artur, mas os credores estão ameaçando acionar judicialmente seu pai. Não há como pagar as dívidas. Como o senhor já sabe, não exportamos mais para a Europa por conta da guerra. O que vendemos aqui não é suficiente.
-         Eu sei. Entendi essa parte da quinta vez que você me explicou.
-         A solução é desfazer-se do negócio. Repassá-lo para algum investidor interessado em...
-         Meu pai está sabendo disso?
-         Não formalmente. Não houve tempo de tratarmos com ele sobre essa alternativa. Na verdade, a diretoria das fábricas chegou a essa conclusão esta manhã. Mas somente seu pai ou o senhor podem autorizar essa transação.
-         Diga aos membros da diretoria que amanhã pela manhã me reunirei com todos. Se tiverem compromissos, desmarquem. Amanhã decidiremos o que fazer.
Artur somente chegou em casa do meio da tarde do dia seguinte, e foi direto para o escritório. Sentou-se na cadeira usada por seu pai a rabiscou algumas palavras num pedaço de papel. Algum tempo mais tarde pediu que chamassem Moreira, que imediatamente foi ao seu encontro.
- Com licença – disse Moreira, abrindo a porta.
- Entre, meu amigo. Preciso de um conselho seu.
- Pode falar – Moreira sentou-se no sofá à frente da mesa em que estava Artur.
- É sobre os negócios do meu pai. Você o ouvia comentando alguma coisa?
- Como assim?
- Qualquer coisa. Você o ouvia conversar com os amigos do trabalho?
- Bem... seu pai era muito reservado, e evitava conversar na minha frente.
- Vamos lá, Moreira. Não é hora para arrodeio. É seu amigo que fala com você, não seu patrão. Eu sei que todo mundo escuta o que se passa nessa casa. Por que você não ouviria as conversas do meu pai?
- Já lhe disse. Ele não conversava nada na minha frente. Mas por que quer saber? Está tudo bem? Digo... em relação à fábrica.
- Não, não está, e não sei o que fazer. Se meu pai não estivesse doente. Mas justo agora, veio tudo junto. Amanda, meu pai, as fábricas.
- Mas você me disse que precisava de um conselho. É sobre a fábrica? Porque de negócios não entendo nada.
- Estão querendo que eu venda.
- Vender? Mas por que?
- Muitas dívidas. Os credores estão nos acionando judicialmente e não há como pagá-los.
            Artur levantou-se e caminhou em volta da sala. Parou em frente a uma estante com livros e prosseguiu:
- Talvez a única solução seja vender. A outra opção é fazer um empréstimo e assim pagar uma parte das dívidas. Fecharíamos uma das fábricas, mas poderíamos manter o negócio, ao menos por um tempo, torcendo para a guerra acabar e tudo voltar ao normal.
- Esta última opção me parece ser a melhor.
- O problema dessa opção, Moreira, é que para efetuar o empréstimo terei que dar esta mansão como garantia.
            Moreira franziu a testa e levou a mão ao queixo, surpreso com o que de havia acabado ouvir. Desde que se lembrava, a família Sanetto era conhecida por possuir uma das mais belas mansões do Rio de Janeiro.
- Lamento, Artur, mas não sei o que dizer. Talvez os colegas de seu pai, da fábrica, sejam os mais indicados a aconselhá-lo.
- Eles dizem que o melhor é vender. Oferece menos riscos. E isso é verdade. Mas não posso me desfazer assim de tudo que meu pai levou a vida inteira para construir.
- Por que queria saber se eu tinha ouvido alguma conversa do seu pai?
- Porque talvez ele já houvesse decidido o que fazer.
            Artur se escorou na mesa, apoiando um braço em cada extremidade, de frente para Moreira. Inclinou o corpo na direção do amigo disse em voz baixa:
- Não comente nada com ninguém.
- Nem precisava dizer.
- Pode ir, então.
            Quando Moreira já abria a porta para sair, voltou-se novamente para Artur e falou:
- Seja lá qual for sua decisão, seja firme ao tomá-la. Não deixe que aqueles homens de terno o intimidem – Artur balançou a cabeça afirmativamente.