Artur chegou da reunião com o Conselho Administrativo das fábricas ao cair da noite do dia seguinte. O tabelião estava à sua espera, e conversaram por um tempo razoável.
Assim que o visitante foi embora, Artur caminhou até o jardim. Moreira estava terminando de aguar as últimas plantas. Era sua segunda atribuição cuidar do jardim.
- E aí, como foi? – indagou Moreira.
- Decidi vender. Sei que não foi a decisão que meu pai tomaria. Mas foi a melhor. Não posso arriscar esta casa. Ela vale muito mais que o dinheiro. Cresci aqui. As poucas lembranças que guardo da minha mãe foram vividas entres estas paredes. Meu pai diz que ela costumava me ninar naquele balanço - disse apontando para o balanço que ficava bem no meio do jardim. - Nunca deixei que o tirassem.
- Eu o compreendo. E se quer saber, teria decidido o mesmo. Você fez a coisa certa.
- Obrigado por seu apoio. És um bom homem, Moreira.
- Pretende contar a seu pai?
- Irei mentir. Já está decidido. Se ele perguntar, e vai perguntar, direi que resolvemos pelo empréstimo.
- Acha que ele irá acreditar?
- Direi que percebemos que não será preciso tanto dinheiro para manter os negócios, e que, assim, poderemos fazer o empréstimo sem ter que oferecer a mansão como garantia. Resolvo dois problemas com uma mentira só.
- Para alguém que mal iniciou a carreira de empresário, você está me saindo melhor que a encomenda – Moreira e Artur deixaram escapar uma boa risada, em um raro instante de descontração depois de tantos reveses.
Em seguida Artur subiu até o quarto do pai para ver se estava ainda acordado. Abriu a porta lentamente e aproximou-se do senhor Sanetto.
- Olá, filho – era a voz rouca e fraca daquele velho homem.
- Como o senhor está, pai?
- Pior que ontem, melhor que amanhã.
- Não fala assim.
- Vai me pedir para ter fé?
- Peço para não desistir.
- Não há porque lutar, meu filho. Você já é homem, pode seguir sozinho. Acho que esta doença serviu para que eu descobrisse isso. Fora você, nada mais importa. Nem mesmo as fábricas. Abri os olhos um pouco tarde para perceber, mas ainda houve tempo para que ao menos você soubesse.
Artur foi surpreendido por aquelas palavras. Ditas por uma voz tão baixa, soaram tão alto. Não esperava ouvir aquilo. Sentia-se em último lugar nos planos de seu pai, e sempre pensou que as fábricas significavam mais para aquele velho homem que o filho que possuia.
- E a reunião, como foi? – perguntou o senhor Sanetto.
- Difícil. Mas acho que chegamos à solução ideal.
- Artur, se eu bem o conheço, sei que não teve coragem de fazer o empréstimo... – o senhor Sanetto pigarreou e prosseguiu – você não teria coragem de arriscar esta casa.
Artur ficou mais tranqüilo por não precisar prosseguir com a mentira. Embora fosse uma circunstância especial, tinha receio de mentir para seu pai.
- Mas se pudesse me desfazer de tudo para que o senhor melhorasse, eu faria.
- Concentre-se naquilo que ainda pode mudar: você mesmo.
O senhor Sanetto pareceu cansado, e sua voz estava ofegante. Artur não disse mais nada. Apenas segurou a mão do seu pai e ficou algum tempo ali, parado, refletindo sobre as palavras que ouvira. “Interessante como a proximidade da morte nos faz valorizar o que é realmente importante”, pensou.
Artur desceu as escadas e foi novamente até o jardim. Mas Moreira não estava mais lá. Dona Aurélia, aproveitando o momento, aproximou-se de Artur para saber informações sobre o senhor Sanetto.
- Senhor Artur, desculpa incomodá-lo, mas como está seu pai?
- Mal – Artur respondeu sem olhar para dona Aurélia. Tinha a voz presa e os olhos embebidos de lágrimas. Esforçava-se para segurar o choro.
Dona Aurélia percebeu que o rapaz não estava bem, e não sabia se tentava confortá-lo ou o deixava sozinho. Pensou em falar sobre Deus e fé, mas lembrou-se do ceticismo de Artur.
- Se você precisar de algo, sabe que pode contar comigo. Tenho você como um filho, e todos nesta casa lhe querem bem.
- Ele está morrendo... – as lágrimas começavam a correr pelo rosto de Artur. Aurélia aproximou-se e tocou carinhosamente seu braço.
- Seu pai é um homem forte, e sei que você também é. Mas todos nós sofremos, fortes ou fracos. No final, muitas vezes acabamos por entender o porque de algumas coisas que acontecem. E mesmo que não possamos compreender tudo, é possível continuar vivendo. Uma força brota dentro de nós e nos dá ânimo para prosseguir.
Artur ficou algum tempo em silêncio, enquanto dona Aurélia carinhosamente acariciava seu braço.
- Se ao menos minha mãe ainda estivesse aqui - disse Artur, já um pouco mais contido.
- Ela estaria muito orgulhosa de você, pelo homem que se tornou. E seu pai também está, sem dúvida.
Aurélia ficou um pouco mais com Artur e retirou-se para a cozinha. Artur ficou no jardim por quase uma hora. Às vezes caminhava por entre as plantas, e depois sentava-se no balanço. Ninguém mais ousou incomodá-lo.
Os dias transcorriam lentamente, e o senhor Sanetto já não dizia praticamente palavra alguma. Às vezes reclamava de dor, ao que a enfermeira que o acompanhava dava-lhe uma dose maior de analgésicos. Alguns amigos da família e parentes distantes ligavam para saber notícias. Alguns intentavam visitas, mas, devido à debilidade física do senhor Sanetto, ficavam na sala, interrogando e tentando consolar Artur, que, por sinal, já estava cansado de dar as mesmas respostas e ouvir as mesmas palavras de consolo vazias de sentimento.
Foi numa manhã calma e serena em que o senhor Sanetto morreu. Artur chorou por mais de meia hora sentado na cama, junto ao corpo pai. O velório ocorreu no salão de festas, na própria mansão. Era desejo do senhor Sanetto ser velado naquela casa, que com tanto esforço havia edificado.
Ainda na tarde daquele dia ocorreu o sepultamento. Centenas de pessoas, entre convidados e curiosos, acompanharam a última despedida daquele que outrora fora um dos homens mais respeitados do Rio de Janeiro. Agora, era só mais um entre tantos mortos, distinguidos apenas por uma inscrição numa lápide.
Artur voltou para casa no carro da família, dirigido por Moreira. Não conversaram absolutamente nada no caminho de volta. Tanto foi o silêncio que, ao chegarem à mansão, Artur perguntou a Moreira se estava tudo bem. E este lhe respondeu com a seguinte citação:
- “Tudo tem seu tempo determinado. Há tempo de estar calado, e tempo de falar”.
- Por isso não tentou me consolar, como todos os outros fizeram?
Moreira voltou-se para Artur, sentado no banco detrás do carro, e respondeu-lhe:
- A única coisa que posso lhe oferecer agora é minha amizade. Compreendo sua dor. Já passei por isso mais de uma vez. E sei que não há nada que se possa dizer nesta hora. Tudo tem seu tempo determinado. Há tempo de sorrir, mas também há tempo de chorar.
- Essas foram as palavras mais razoáveis que ouvi nestes dias. Se você houvesse tido oportunidade de estudar nas escolas que estudei, poderia ter se tornado um escritor ou algo assim.
- Na verdade, as palavras não são minhas.
- E de quem são? Ah! Nem precisa responder, já sei. São da Bíblia.
Logo que saiu do carro, Artur foi até o balanço que ficava no jardim. Ficou sentado ali por um bom tempo, pensando nas palavras que ouvira de seu pai dias atrás, e no que Moreira lhe dissera no carro. Ambos falaram pouco, mas disseram muito.
Já havia tido muitas conversas com Moreira, e aprendido muito com seu amigo, mas jamais havia ouvido palavras tão profundas. Considerou firmemente a hipótese de que havia, de fato, tempo para tudo, e que certas dores não poderiam ser adiadas, disfarçadas ou encobertas. Em um vazio de explicações razoáveis para tantas tragédias, a única alternativa aceitável, embora longe de ser a mais fácil, parecia esta.
Lembrou-se também das tantas discussões que tivera com o senhor Sanetto. Quantas vezes falou-se tanto, mas não se disse nada que realmente importasse. Os últimos dias de vida do seu pai pareciam um novo começo, que embora tenha durado pouco, foi suficiente para sarar muitas feridas. E justamente quando menos seu pai falou, no leito de morte, talvez a pior circunstância possível, pareceu tão sábio.