Moreira e Artur resolveram ficar no primeiro hotel decente que encontraram. Artur ligou para o pai do saguão do hotel, avisando que já estava indo embora, e inventou uma história para justificar. Em seguida subiu para seu quarto, que ficava de frente para o de Moreira.
Era quase meia-noite e Artur não havia conseguido sequer cochilar. Levantou-se e caminhou pelo quarto, certo de que não conseguiria dormir. A morte de Amanda e a armação de Elisa ainda estavam entaladas em sua garganta. Olhou o relógio e viu o ponteiro dos segundos mexer-se vagarosamente. Decidiu acordar Moreira.
Toc toc!... Toc toc toc!
- Quem é? – respondeu Moreira com uma voz rouca.
- Artur – alguns segundos depois a porta de abriu.
- O que houve? – Moreira estava com uma cara de quem havia sido acordado de um sono angelical.
- Desculpe acordá-lo a esta hora, meu amigo. Acho que não foi uma idéia muito boa. Pensei que talvez pudesse estar acordado. Mas acho que a essa hora só eu não estou dormindo nesse hotel.
- Está tudo bem, Artur? – Moreira não parecia com a mínima vontade de conversar.
- Na verdade, só queria conversar um pouco. O travesseiro até que é um bom ouvinte, mas não interage muito.
- Só um minuto. Já volto.
Moreira lavou o rosto e foi até o quarto de Artur, que já estava com aporta aberta. O jovem rapaz estava de pé junto à janela do quarto, olhando para a rua.
- Obrigado por vir, Moreira.
- Tenho bons motivos para ter vindo.
- E quais seriam estes bons motivos? – indagou Artur ainda olhando para a rua deserta.
- Primeiro que você é meu amigo, e segundo que você é meu patrão. São ou não são dois bons motivos?
- Sim. São bons motivos – Artur sorriu brevemente. – Mas prefiro que seja apenas pelo primeiro.
- Pode estar certo que sim. Ele já é suficiente.
- Obrigado.
- Artur, talvez eu não tenha deixado claro, mas quero que saiba que lamento muito o que aconteceu hoje. Estava torcendo para que desse tudo certo. Saiba que fico feliz quando você está feliz, e triste quando você está triste.
- Agradeço por sua consideração.
Moreira ficou em pé próximo à cama, olhando para Artur e pronto para ouvir o que seu amigo tinha a dizer. Sabia que, naquele momento, seria mais útil se ficasse calado e apenas escutasse.
- Não foi fácil mesmo hoje à tarde. Ter que ouvir tudo aquilo. Também acabei dizendo coisas que não devia, mas ela mereceu ouvir. Elisa não tinha o direito de ter feito o que fez. Você acha que alguém pode amar dessa forma? Assim, enganando, mentindo, se passando por outra pessoa? Que amor é esse? É por isso que não acredito no amor. Ele serve de justificativa para os maiores absurdos. Infelizmente, cheguei à conclusão de que o amor é uma idéia equivocada da pior forma possível. Tudo que existe entre as pessoas é, no máximo, afinidade. Na maioria das vezes, tudo se resume mesmo é a interesses pessoais egoístas. Você não acha? – Moreira não sabia se respondia a Artur ou se se tratava apenas de uma pergunta retórica. – Você está me ouvindo, Moreira, ou será que caiu no sono?
- Sim, meu amigo, estou ouvindo atentamente.
- Então o que acha?
- Acho que o amor existe. Acredito que seu pai o ama, apesar de às vezes não demonstrar esse amor da forma que você espera. Creio que você ama Amanda.
- Não, Moreira. Eu só estava apaixonado por ela, só isso. A paixão passa. Quanto a meu pai, por ele guardo afeto, e acho que ele sente algo parecido por mim.
- E o que é o afeto, Artur, senão amor?
- Não, Moreira. Afeto não é o mesmo que amor. Não esse amor a que você e todas as demais pessoas se referem. Afeto é apenas um sentimento que vem com a convivência, com a proximidade. O amor, pelo que já ouvi, é algo maior, sublime, que existe apenas no mundo das idéias. Ninguém ama ninguém.
Moreira achou melhor não argumentar com Artur. Sabia que o amigo falava mais pela emoção que pela razão. Novamente seria melhor ouvir e calar-se.
- Meu pai ainda está doente.
- Você conseguiu falar com ele?
- Sim – Artur ficou alguns segundos em silêncio e continuou: - Estava meio rouco, e falava com dificuldade. Parece que está muito doente. Mas não contou o que tem.
- Não se preocupe. O senhor Sanetto é um homem forte. Deve ser apenas uma gripe.
- Se fosse ele teria me dito.
Artur saiu da janela e caminhou pelo quarto, sentando-se na cama. Moreira permanecia em pé, recostado ao guarda-roupa.
- É incrível como de repente as coisas mudam – disse Artur. - Há dois dias eu estava feliz e empolgado com a vida. Agora estou aqui, num quarto de hotel, triste por Amanda, enraivecido com Elisa e preocupado com meu pai.
- As coisas irão melhorar. Tenha fé.
- Fé em Deus?
- Sim, fé em Deus.
- A fé em Deus é uma idéia ainda mais absurda que a do amor.
- Mesmo que você não tenha fé em Deus, meu amigo, ele continua tendo fé em você.
- O que é fé para você, Moreira?
- “É a certeza das coisas que se esperam”. É confiar em Deus. Acreditar que ele fará o melhor para nós, que se há algo que nos prometeu, ele irá cumprir.
- Como é possível que alguém que não fala com você lhe prometa algo? Como pode alguém que não se pode sentir ou ver existir? Deus é uma criação do homem para fugir da realidade, para ter a quem culpar ou a quem recorrer quando ninguém mais pode ajudar.
- Eu confesso a você, Artur, que muitas vezes me fiz essas mesmas perguntas. Até que entendi que podemos, sim, senti-lo, e que podemos enxergá-lo em muitos lugares e momentos da nossa vida.
- Onde você o enxerga?
- No amor entre homem e mulher, no companheirismo entre dois amigos, no cuidado de uma mãe com seu filho. De onde mais tudo isso viria? Do acaso? Certamente que não. Algo maior está por trás de tudo isso. Apenas uma mente brilhante como a de Deus poderia criar todas essas coisas.
- E por que tudo isso não pode apenas ser fruto do acaso? De uma evolução natural do homem?
- Prefiro crer que Deus está por trás desses sentimentos que o simples acaso.
- E as coisas ruins que acontecem? São também criadas e executadas por Deus?
- Por algum motivo que nós não entendemos Deus permite que coisas ruins aconteçam.
- Eu respeito sua fé, meu amigo, mas não posso crê em um Deus que permite que pessoas boas sofram injustamente. É melhor não acreditar em Deus do que conceber a existência de um ser divino sádico.
- Você não pode dizer que Deus é ruim simplesmente porque não concorda com o que ele faz ou deixa de fazer. Nós somos apenas pessoas limitadas. Se ele criou tudo, com certeza sabe o que está fazendo.
- E certamente ele tem um plano que eu só compreenderei no final. Não é isso que você quer dizer, Moreira? – Artur levantou-se da cama parecendo um tanto exaltado, e novamente caminhou até a janela.
Moreira não deu mais nenhuma palavra. Artur ficou parado junto à janela olhando a rua. Durante alguns minutos reinou o completo silêncio, até que Artur resolveu novamente falar.
- Moreira, não me entenda mal. Não queria me exaltar.
- Tudo bem, meu amigo, eu entendo.
- Um dia, quando você precisar de mim, eu prometo que terei por você a mesma consideração que tem por mim e meu pai.