domingo, 26 de junho de 2011

Cartas de Amor II

 
Quase dois meses se passaram desde que Artur retornara de Minas com Moreira. Os dois haviam se tornado amigos na viagem, e, desde então, quase todas as noites encontravam-se na área de serviço, nos fundos da mansão, escondendo-se do senhor Sanetto. Sabiam que o pai de Artur não permitiria que ele mantivesse amizade com um negro, muito menos dentro da sua própria casa.
Artur distanciara-se de seus amigos. Fora da faculdade, mantinha contato apenas com Celsinho, com quem saía de vez em quando. Estava mais estudioso, porém menos eufórico que de costume. As cicatrizes de uma paixão intensa e mal resolvida ainda permaneciam. Sem perceber, havia achado nas conversas com Moreira o alívio de que necessitava. Somente naquelas instantes, que às vezes estendiam-se madrugada adentro, conseguia esquecer Amanda. Isso quando não era ela o tema da conversa.
Tudo parecia ter voltado ao normal, e de uma forma melhorada. Artur estava um pouco mais amadurecido. A amizade com Moreira fazia-lhe bem. O pai parecia mais condescendente, e havia voltado atrás em suas proibições e cortes orçamentários para o filho. Até que, em uma manhã, o carteiro entrega nas mãos de dona Aurélia uma correspondência endereçada a Artur.
            A princípio, Aurélia teve dúvidas sobre o que fazer. Aquelas cartas, meses atrás, haviam tirado a paz do jovem Artur. Se não entregasse, Artur jamais saberia de sua existência. Guardou a carta consigo até a noite, quando resolveu consultar Virgínia, uma das empregadas da casa, para pedir sua opinião.
            Conversaram bastante, mas não chegaram a um consenso. Ora estavam dispostas a entregá-la a Artur, e logo em seguida achavam que seria melhor deixar tudo como estava. No dia seguinte, na hora do almoço, as duas resolveram falar com Moreira. Ele também não sabia o que fazer, mas sua amizade por Artur falou mais alto.
-         Bem, senhoras, não penso que entregar esta carta a Artur seja o melhor para ele, mas creio que poderia devolver-lhe a alegria de viver. Embora eu saiba que amores são como andorinhas de verão, vêm e vão, creio que Artur tem o direito de decidir o que é melhor para si.
-         Mas é claro que ele irá de novo atrás dela, Moreira – disse Aurélia.
-         Então que ele vá. Eu também iria.
-         Você está dizendo isso porque agora são amigos – falou Virgínia, em tom provocativo.
-         Não vou me intrometer mais nesta história. No seu lugar, dona Aurélia, eu entregaria esta carta a Artur. Se ele descobrir o que você fez, não tenha dúvida de que terá o mesmo destino que Maria: a rua!
-         Você não está pensando em contar a ele, está?
-         Claro que não. Estou apenas avisando, não ameaçando.
            O medo de que as palavras de Moreira se tornassem verdade foi razão suficiente para fazer desaparecer qualquer dúvida sobre o que fazer. Imediatamente, dona Aurélia foi até o quarto de Artur, que havia acabado de chegar da faculdade, bateu à porta, e o chamou.
-         Pode falar, dona Aurélia – veio a voz de dentro do quarto.
-         Há algo que preciso lhe entregar, senhor – e logo a porta se abriu.
-         O que é?
-         É uma carta para o senhor. Chegou hoje, pela manhã.
            Artur contemplou surpreso aquele pequeno envelope amarelo nas enrugadas mãos de dona Aurélia. Seu coração acelerou como quando recebia uma nova carta de Amanda. Mas seria dela a carta? Artur tomou-a das mãos de dona Aurélia e fechou a porta. Seus olhos brilharam e sua boca abriu um largo sorriso quando leu o nome de Amanda no remetente.
            Sentou-se na cama, como havia feito da última vez. Rasgou alvoroçadamente o envelope e tirou de dentro uma pequena folha de papel, onde estava escrito:

            Olá, Artur!
            Ainda lembra-se de mim? Estou bem melhor agora. Perdoe-me por estar a tanto tempo sem enviar-lhe cartas. Eu e minha família passamos por muitos problemas, além da minha doença. Viemos morar em Belo Horizonte, para tratar da minha saúde. Encontrei um bom médico. Ele descobriu o que eu tinha. Acho que foi um anjo que Deus colocou em minha vida.
            Mudamos de residência seguidas vezes desde que viemos para cá, e minha preciosa caixinha, em que se encontravam as cartas que você havia me enviado, acabou se perdendo em uma mudança que fizemos. Felizmente, consegui reencontrá-la, e por isso estou escrevendo novamente. Confesso que sou muito ruim de memória, mas desta vez guardarei seu endereço em minha mente.
            Meu pai me falou de dois rapazes do Rio de Janeiro que foram à nossa antiga casa, perguntando por mim, segundo disseram a ele os novos moradores. Foi você?”
            E como você está? Será que ainda sente minha falta como eu sinto a sua? Sei que deve estar chateado, mas peço-lhe que me responda mais uma vez. Estou ansiosa por notícias suas.
            Com saudades,
            Amanda.
P.S. Por favor, responda-me, nem que seja para dizer adeus. O endereço é o mesmo que se encontra no envelope.
           
            Artur leu e releu a carta várias vezes, buscando nas entrelinhas vestígios daquela paixão ardente que há algum tempo atrás predominava nas cartas de Amanda. Sentiu-se novamente entusiasmado com o futuro, e fez diversos planos ali mesmo, deitado sobre a cama, olhando para o teto. Imaginou como contaria a seu pai, mas estava ansioso por falar com Moreira. Por que não falar logo com seu amigo?
            Desceu imediatamente a escadaria e foi até a cozinha. Moreira ainda estava almoçando, mas logo que viu Artur, sabendo já do que se tratava e instigado pela curiosidade, deixou o prato de lado e o acompanhou até o jardim. Conversaram por algum tempo, enquanto caminhavam por entre as flores e plantas.
-         O que você pretende fazer agora, Artur? Irá responder à carta, não irá?
-         Pensei que você fosse me desencorajar, Moreira. Passou todo esse tempo tentando me convencer de que havia outras mulheres... e já estava quase conseguindo – Artur gargalhava a cada palavra que dizia.
-         Bem, meu amigo, você me parece empolgado como jamais vi. Não tenho coragem de dar outro conselho além deste. E logo você, que não acredita que o amor existe.
-         E não existe mesmo! Eu admito que gosto muito dessa garota, e até posso estar apaixonado. Mas o amor é algo que só existe em poesias.
-         Artur, você não precisa acreditar no amor para senti-lo, ou vivê-lo – Moreira meditou por um breve momento. – E se ele existe de fato ou não, que importa? Basta olhar você para concluir que as teorias sobre o amor são apenas teorias, e o que vale é viver, viver... – Moreira já ensaiava uma canção, quando Artur o interrompeu, parando de caminhar.
-         Moreira, não me entenda mal. Mas você parece ter bastante conhecimento para quem é...
-         Negro? – Moreira completou antes que Artur concluísse.
-         Não me interprete mal. Eu não tenho problema com sua cor. Refiro-me à criação que você teve, e a este trabalho...
-         Eu tenho alguns bons amigos, das fábricas de seu pai. Eles emprestam-me livros de poesias, de história e outros mais para eu ler.
-         Eu não sabia que você...
-         Que eu sei ler?
-         Não... é que...
-         Artur, eu não culpo você por ter essa imagem de mim. Você é um ótimo amigo, e um bom rapaz. No dia que conseguir libertar-se desta vida boa, e enfrentar sozinho o mundo aí fora, tenho certeza de que mudará muitas coisas que pensa.
-         Não se chateie comigo, Moreira – Artur estava mais reflexivo, e menos eufórico.
-         Agora preciso ir. Vim à mansão para pegar algo para seu pai, e se demorar... você sabe como é seu pai.
            Logo que se despediram, Artur voltou apressado para seu quarto, já pensando no que escreveria para Amanda. Quando terminou, não gostou do que havia escrito, e reescreveu com algumas modificações. Leu-a novamente, e passou a limpo uma última vez. Depois de algumas horas, terminou. Foram estas as palavras que enviou para Amanda:

            Querida Amanda,
            Estou muito feliz por esta carta que me enviou. Pensei que o pior tivesse acontecido, ou que tivesse me esquecido. Fico feliz de que esteja tudo bem com você. Confesso que fui até sua casa. Fiquei muito preocupado com sua doença. Que bom que agora está curada! Mal posso acreditar que você está bem!
            Também sinto muito sua falta. Penso em você todos os dias. Sofri bastante com a falta de notícias. Não me dê mais um susto desses. Agora sei o quanto você é importante para mm. E ainda lembro muito bem do seu sorriso e de seus olhos verdes. Como disse antes, aquela conversa ficou gravada em minha memória.
            Está tudo bem por aqui. Muito mais agora que sei que você está bem. Estou quase concluindo a faculdade. Assim que terminar, poderei ir vê-la, se você quiser. E desta vez espero encontrá-la. Não vejo a hora de olhar seu rosto novamente, e ouvir sua voz.
            Também estarei aguardando mais cartas suas. E prometo que enviarei muitas outras. Não mude de endereço novamente. E se for mudar, não esqueça de me avisar, certo?
            Com carinho e muita saudade,
            Artur”.           

            Artur enviou a carta naquele mesmo dia, sem que o senhor Sanetto tomasse conhecimento. E novamente passou a aguardar ansiosamente pela resposta. Mas desta vez estava mais maduro, e prudente. Evitou permanecer mais tempo em casa que o de costume, e procurava controlar a todo custo sua ansiedade. Somente a partir da terceira semana passou a perguntar à dona Aurélia pelas correspondências que chegavam.
            E mais uma vez, a resposta que ansiosamente esperava chegou. Amanda parecia mais apaixonada que antes. Não era uma carta como as demais. Era uma poesia, com declarações profundas, quase solenes, e apaixonadas escritas em um pequeno cartão de páscoa.

            Meu doce Artur,
           
            Não sabes tu a falta que me fazes
            Que sem ti meus dias são tristes
            E minhas alegrias fugazes
            Há tanto tempo tenho esperado por ti
            Na esperança de que ao me encontrares
            Ache eu a metade que falta em mim
            E se complete minha felicidade

            Senti vontade de escrever-lhe essas palavras. Por favor, não as interprete mal. São apenas uma forma de expressar o sentimento que brota do meu coração e inunda todo meu corpo e minha mente.
            Vi este singelo cartão de páscoa exposto em uma pequena loja em frente a minha casa, e achei-o sua cara. Lamento não poder enviar-lhe mais do que isso. Contudo, nada poderia representar este sentimento que guardo por você.
            Agradeço sua compreensão. De agora em diante, prometo-lhe que farei tudo ao meu alcance para enviar-lhe cartas. E não irei a lugar nenhum sem que você saiba.
            Por favor, não venha visitar-me ainda. Não por que eu não queira, pois é tudo que mais desejo, mas porque estamos nos mudando frequentemente de residência. Hoje mesmo, papai, ao chegar em casa, disse que arrumássemos nossas malas novamente. Ele não explica porque isso acontece. Por isso acho melhor esperar um pouco mais. E quando estiver pensando em vir, não se esqueça de me avisar.
            Com amor,
            Amanda.

            Artur apressou-se em responder, e antes que pudesse receber uma nova carta, enviou outra. E quando chegou a resposta, esta veio novamente em meio a frases poéticas e apaixonadas. Antes que pudesse dar-se conta, Artur já estava irremediavelmente envolvido pelas teias daquela paixão.
            Dominado pelo pujante desejo de rever Amanda, criou coragem para novamente pedir a seu pai autorização para ir vê-la.

-         Mas isso de novo?
-         Pai, é como eu expliquei ao senhor. Ela não tinha como se comunicar comigo. Havia perdido meu endereço.
-         Essa história está muito estranha, meu filho. Abra seus olhos. Não deixe que essa paixão cegue você novamente.
-         Pai, eu preciso revê-la. Cheguei a pensar que Amanda tivesse morrido. Não quero mais desperdiçar meu tempo. E se algo acontecer amanhã com ela de novo? Se ela voltar a adoecer?
-         Está bem, Artur. Fiz o que pude para alertá-lo. Meu coração me diz que não é boa idéia você ir. Mas, se é o quer... Se perder alguma cadeira da faculdade, terá que pagar do próprio bolso se quiser repeti-la, entendeu?
-         Obrigado, pai – Artur deu um abraço entusiasmado no pai, e distanciando-se um pouco, elevou a mão à cabeça e disse: Tem mais uma coisa que queria lhe pedir.
-         E o que é?
-         Posso ir de carro? Eu já tenho vinte e um anos...
-         Tudo bem, tudo bem. Mas Moreira irá dirigindo para você.
-         Não precisa, pai.
-         Não estou pedindo. Ou você aceita minhas condições ou não vai.
-         Está bem. Como o senhor quiser.
-         E tem mais, rapaz. Eu mesmo direi a ele que não quero você dirigindo. Se ele desobedecer, eu o demito, assim como fiz com Maria.

Um comentário:

  1. Gosto bastante das suas cartas, elas são realmente melhores que as de Nicholas Sparks em "Querido John". Na verdade, Nicholas tentou forçar a emoção quando escreveu as cartas de Savannah, e isso não me convenceu. Senti uma pontinha disso quando Moreira disse a Artur que não sabia o que era felicidade - apenas um toque. Mas, em geral, a história é muito boa.

    Alguma coisa no enredo me fez lembrar "Marília de Dirceu", de Tomás Antônio Gonzaga. Faz onze anos que li esse livro, lembro-me que era de poesias escritas até mesmo da prisão. Ele era apaixonado pela moça, mas não podiam ficar juntos. Um romance lindo, porém, triste, muito triste. Espero que o seu seja mais feliz, contudo as deixas do pai de Artur me fazem desconfiar que algo muito ruim pode acontecer. Esse pai de Amanda que vive fugindo, o longo período em que ela passou sem procurá-lo...

    Assim que puder, lerei a continuação. Só não irei ao próximo capítulo agora, pois já estou cochilando na frente do notebook.

    Parabéns!

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