Quando o senhor Sanetto entrou no quarto, Artur estava deitado na cama, lendo um livro de direito. Então sentou-se em uma cadeira posta junto a uma escrivaninha.
- Como você está filho?
- Estou bem – Artur continuou lendo, sem preocupação de esconder sua irritação.
- Fui convidado para a festa de aniversário do secretário de finanças do nosso estado, amanhã à noite. Mas não estou com muita disposição para ir. Quero que vá como meu representante. Tenho dois convites. Pode levar algum de seus amigos.
- Por que o senhor não vai? Está doente? - havia um nítido tom irônico na pergunta de Artur. Seu pai jamais perdia um encontro social, especialmente se envolvesse políticos e grandes empresários.
- Não me sinto bem. Preciso de um descanso.
- Problemas na empresa? - Finalmente o olhar de Artur voltava-se para seu pai.
- Nada de tão grave, espero.
- É por causa da guerra?
- Em parte sim – o senhor Sanetto levantou-se e dirigiu-se à porta. - Você deve estar lá antes das sete horas da noite. Não se atrase.
No dia seguinte, pela manhã, Artur ligou para Celsinho, que não pensou duas vezes antes de dizer “sim”. Ambos chegaram à casa do secretário exatamente as sete da noite. O próprio Artur dirigiu o carro, embora seu pai houvesse insistido para que utilizasse o motorista da família, o que, além de mais elegante, era também sinal de boa saúde financeira.
O propósito de Artur e Celsinho não era outro senão conhecer novas garotas. Passaram toda a noite paquerando, sem sucesso, com o maior número de moças possível, até que se depararam com três belas jovens que estavam conversando na varanda do andar superior da mansão.
- Olha que coisinhas fofas - disse Celsinho.
- Eu vou até lá. Até agora não conseguimos nada por aqui. Talvez seja a nossa melhor chance – falou Artur.
- E que desculpa você vai inventar para puxar conversa?
- Qualquer uma. Elas saberão que é uma desculpa de qualquer jeito - Celsinho deu um leve sorriso, numa mistura de afobação com nervosismo. Depois seguiu Artur, quase se escondendo atrás dele.
- Não acredito que estou fazendo isso – Celsinho falou em voz alta consigo mesmo.
- É por isso que nunca consegue uma namorada. Você se deixa dominar pelas emoções. Tem que aprender a ficar frio, relaxar. Se elas nos dispensarem, a vida continua. Mas se gostarem de nós, a vida também vai continuar, mas bem melhor.
Chegaram até a varanda e se apoiaram no parapeito, que tinha cerca de um metro e meio de altura, fingindo estarem interessados na vista do jardim que contornava a mansão, como se procurassem alguém. Depois de alguns segundos, Artur respirou fundo e, voltando-se na direção das três moças, disse:
- Com licença, senhoritas. Vocês viram um menino de botas vermelhas correndo por ai? - Celsinho rapidamente abaixou a cabeça e levou a mão à testa, ainda incrédulo quanto ao sucesso daquela missão, e mais ainda depois de uma pergunta estúpida daquelas.
- Como? Botas Vermelhas? - perguntaram as garotas.
- Bem... - Artur ainda formulava sua resposta quando Celsinho o interrompeu.
- É que nosso filho, digo, o filho dele, saiu por aí, brincando com algumas crianças que conheceu na festa – disse Celsinho com uma voz trêmula e aguda. Mas Artur não conseguiu esconder seu desconforto com aquela nova informação. Ter um filho jamais estivera entre seus truques de conquista.
- Você me parece tão jovem para ter filhos. Quantos anos você tem? - perguntou a mais velha delas.
- Eu? Vinte e... três. É que, na verdade, não é bem filho. Ele fica comigo de vez em quando, porque a mãe viaja às vezes a trabalho.
- Tudo bem. Não precisa ter vergonha de dizer que é divorciado. Meu pai também é. Só que ele é um tanto mais velho que você. Na sua idade, acho que a única coisa que ele sabia fazer era beber e paquerar garotas.
As outras duas jovens permaneciam caladas, porém atentas à conversa, que era no mínimo muito estranha. Celsinho agarrava discretamente o braço direito de Artur, puxando-o para trás, como se dissesse: “abortar missão”.
- Olha, está havendo um mal entendido. Eu realmente não tenho filho. O garoto é só...
- De qualquer forma, muito obrigado senhoritas - interferiu Celsinho novamente. - Eu e meu amigo o procuraremos em outro lugar. Uma boa noite!
Celsinho segurou firmemente o cotovelo esquerdo de Artur e o puxou com força. Ambos caminharam o suficiente para desaparecer do raio de visão das três moças, descendo as escadas que davam acesso à sala principal.
- Então é essa a técnica de conquista que você usa? - perguntou Celsinho quando já estavam na sala. A música que animava a festa parecia mais alta, forçando-os a aumentar também a altura da voz.
- Espera aí, Celsinho – Artur virou-se, parando à frente de seu amigo – foi você quem estragou tudo!
- Não Artur, você estragou tudo. Que história doida foi aquela de garoto de botas vermelhas? Ou seria uma garotinha de chapeuzinho vermelho?
- Fazia parte do meu plano, seu idiota. Era exatamente para elas entenderem que eu estava inventando toda a história para puxar conversa. Então, você resolveu abrir a boca, e dizer que eu tinha um filho. Nem sabia o que eu ia falar e já foi logo se metendo onde não devia. É por isso que nunca namora.
- Não namoro porque não tenho o dinheiro que você tem. Artur, no seu lugar, eu não perderia meu tempo com essas dondocas. Não faltam cabarés nesta cidade! - quando Celsinho ainda terminava de falar, a música ao fundo parou, e um grande silêncio se fez. Tempo suficiente para que todos que estavam próximos, e não eram poucos, pudessem ouvir sua última frase.
O momento só não foi mais constrangedor porque o secretário, que acabara de subir alguns degraus da escada da sala principal, tomou a cena e iniciou seu discurso, o qual se demorou por aproximadamente quinze minutos, terminando com uma salva de palmas.
Após o discurso, e alguns parabéns públicos vibrantes e “bajulosos”, mesas foram postas ao longo de todo um compartimento adjacente à sala principal, e todos se serviram com um rico jantar.
Celsinho e Artur procuravam algum lugar onde se esconder dos olhares carregados de deboche de alguns. Mas não desejavam sair da festa daquela forma. Esperavam ainda uma alternativa mais digna, ou menos constrangedora. Então resolveram aventurar-se casa adentro, a procura de um refúgio. Algumas portas atravessadas e já estavam em uma pequena sala, escura e luxuosa.
- Acho que não é boa idéia ficarmos aqui – disse Celsinho, ainda com uma aparência pálida, oriunda do vexame recente.
- Não tem problema. Ninguém saberá que estamos aqui. Estão todos preocupados com a festa - Artur ainda nem terminara de pronunciar estas palavras e já se esparramava sobre um dos sofás da sala, colocando as duas pernas sobre uma pequena mesa posta ao centro.
- Nossa, que vexame... - suspirou Celsinho.
- Mais uma, não é meu amigo? - Artur gargalhou, e continuou. - Eduardo e Jorge gostarão de saber da mais nova super garfe do nosso amigo Celsinho.
- Eu direi que foi você quem falou. Será sua palavra contra a minha.
- Mas em quem você acha que eles irão acreditar, meu amiguinho Celsinho? Você é famoso por suas garfes – novamente Artur gargalhou.
De repente, entraram na sala as três moças que haviam conhecido minutos antes. Artur rapidamente pôs-se de pé. Celsinho deixou escapar um pequeno sorriso ao ver o malabarismo de seu amigo para se levantar, até perceber no olhar fulminante de uma das moças que haviam se metido em mais uma situação difícil.
- O que vocês dois estão fazendo aqui? - Perguntou a mais velha delas.
- Nós somos convidados – respondeu Artur.
- Convidados para a festa, que é lá fora.
- Assim como vocês – disse Artur sem titubear.
- Você sabe quem eu sou, garoto?
- Cilene, minha prima, deixe isto comigo, por favor – interferiu uma das outras duas moças, a mais jovem. – Senhores, Cilene é sobrinha do senhor secretário, o dono desta casa. Ela está com dores de cabeça e necessita de descansar um pouco. Peço que se retirem, por gentileza – ao ouvir isso, Artur recuou em seu ímpeto, e ficou sem saber o que dizer.
- Pedimos desculpas pelo transtorno – tomou a frente Celsinho. - Não sabíamos que...
- Que eu era a sobrinha do dono da festa. Agora, saiam daqui antes que eu peça que chamem minha tia e os seguranças – completou Cilene rigidamente.
Imediatamente Artur e Celsinho se retiraram de cabeças baixas, tomados de vergonha. Caminharam até o jardim e sentaram-se sobre um banco feito de cimento. Ainda atordoados por mais um vexame, não perceberam que o mesmo estava repleto de rachaduras.
Celsinho já olhava para Artur, pronto para revidar toda a chacota de que havia sido alvo pouco tempo atrás. Contudo, antes que pudesse dizer algo, o pior aconteceu. O banco desfez-se como uma broa em dezenas de pequenos pedaços. De repente, lá estavam os dois, estatelados no chão.
Ouviu-se uma gargalhada quase uníssona dos que estavam próximos, mas alguns rapidamente prontificaram-se a ajudar os dois rapazes.
- Está tudo bem com vocês? Se machucaram? - Um senhor perguntou gentilmente.
- Só as minhas costas que doem – respondeu Celsinho, ainda se reerguendo.
- E você rapaz? - perguntou o mesmo homem a Artur, que segurava firmemente o braço esquerdo. - Oh não... seu braço está sangrando!
- O que aconteceu? - o som vinha de uma suave voz feminina. Era uma das três moças que Artur e Celsinho haviam conhecido, de novo a mais jovem delas.
- O banco onde eles estavam despedaçou-se todo e eles caíram. Um deles está sangrando – respondeu alguém.
- Tragam-nos para a área de serviço, por favor. Fica logo ali, nos fundos da casa. Eu irei providenciar os curativos e remédios.
Rapidamente ergueram Artur e conduziram os dois rapazes por entre os convidados até a área de serviço, que era ligada por uma porta à cozinha da casa. A porta logo se abriu e de dentro dela surgiu imediatamente a simpática jovem.
- Deixe-me ver esse ferimento no seu braço – disse ela docemente.
- Você é enfermeira? - perguntou Artur.
- Não ainda, mas logo serei.
- Tem certeza de que sabe o que está fazendo? - insistiu Artur, ainda desconfiado.
- Sim, eu sei – novamente ela respondeu de forma muito delicada.
- Que cheiro bom.
- Como, senhor?
- Seu perfume. Ele tem um aroma diferente. É de muito bom gosto – as palavras de Artur fizeram o rosto de Elisa enrubecer.
Alguns minutos depois, o curativo no braço de Artur já estava pronto. Celsinho ainda reclamava da dor nas costas, mas também já sentia-se melhor. Quando a jovem já ia se retirar, Artur segurou sua mão, e disse:
- Espere! - depois de olhá-la fixamente por um breve momento, prosseguiu. – Como posso retribuí-la?
- Não foi nada – disse ela.
- Então, diga ao menos seu nome.
- Elisa.
- Não vai perguntar o meu? - Elisa sorriu, e antes que desse alguma resposta, Artur continuou. - Sou Artur, e este é Celso.
- Mas pode me chamar de Celsinho – completou Celsinho, tentando parecer natural; sua voz tremia sempre que conversava com alguma mulher desconhecida. Era um frouxo.
- Muito prazer em conhecê-los – disse Elisa com um singelo sorriso, puxando de volta a mão que Artur segurava.
- E sua amiga? Como está? - perguntou Celsinho.
- Está deitada. Logo estará melhor.
- Elisa, deve haver algo que eu possa fazer por você.
- Está tudo bem, senhor Artur. Não se preocupe com isso.
- Não me chame assim, por favor. Eu devo ser apenas um pouquinho mais velho que você. E ao comtrário do que meu amigo disse antes, eu não possuo filhos.
- Eu sei disso.
- Sabe? - disse Celsinho, parecendo surpreso.
- Digamos que nós sabíamos que a intenção de vocês não era achar um garoto de botas vermelhas – Elisa deixou escapar um sorriso. – Minha prima, Cilene, tem um humor refinado, e não gosta de engraçadinhos.
- Fazia parte dos meus planos vocês saberem que eu só estava procurando uma desculpa para puxar conversa. Mas o Celsinho se meteu e estragou tudo – completou Artur com um ar de superioridade, tentando mostrar domínio da situação.
- Bem, senhores... Agora eu preciso ir. Reencontrá-los dessa forma e terminar fazendo um curativo também não estava nos meus planos. Até logo.
- “Até logo” significa que nos veremos novamente? – perguntou Artur cinicamente.
- É uma maneira educada de dizer adeus, senhor – Elisa virou-se e entrou pela mesma porta por onde saíra minutos antes, fechando-a rapidamente.
Artur e Celsinho resolveram ir embora. Não tinham coragem para permanecer naquela festa nem mais um minuto. Aquela noite marcaria para sempre suas vidas. Para Artur, contudo, a noite seguinte seria ainda mais marcante.
ai, ai, ai, Renato, agora vou ter que interferir.
ResponderExcluir1 - Não havia divórcio no Brasil em 1943? A lei é da década de 70. Havia pelo menos desquite? Ou se ficava apenas numa separação?
2 - Numa festa desse porte, naturalmente Artur estaria vestindo terno, senão fraque, ou sei-lá-mais-o-que. Que queda miserável, que rasgou a roupa dele e feriu o braço! De repente, pode machucar o rosto (já que você precisa dos préstimos de enfermeira da moça)
3 - "era um frouxo" é opinião sua. Minha opinião é: atenha-se aos fatos e deixe o leitor concluir o que quiser
4 - "não possuo filhos" - de fato, não, pois filhos não são posse de ninguém além deles mesmos. É melhor dizer "não tenho filhos"
Fechou com um gancho ótimo! Vou ler o terceiro capítulo!
(p.s. que tal numerar os capítulos, só para a gente não se perder no blog?)