O senhor Sanetto não pôde acompanhar Artur e Moreira até a estação, pois tinha uma reunião muito importante naquele dia. Então os dois foram de táxi para a estação. O trem partiu pontualmente, às 13 horas.
Durante as primeiras horas da viagem para Minas Gerais, Artur manteve-se envolvido com seus pensamentos. Se puxava conversa, era para pedir alguma coisa, e respondia quase sempre de forma monossilábica. Embora Moreira o conhecesse há anos, e houvesse sido seu motorista em tantas idas e vindas, não sabia quase nada da sua vida. Na maior parte das vezes, Artur evitava conversar. O verdadeiro motivo, Moreira sabia qual era: sua cor.
Moreira era um mulato, não muito alto, mas forte, fruto de uma aventura extraconjugal de um comerciante branco com uma ex-escrava. Com muita sorte havia conseguido o emprego de motorista. Não era casado, e não possuía filhos. Sua mãe morrera quando ainda era um adolescente. Morava no fundos da mansão dos Sanetto, pois o que ganhava mal dava para sustentar a si próprio.
Nenhum dos dois conseguiu dormir durante a viagem. Artur não parava de pensar em Amanda, e Moreira, que a princípio parecia maravilhado com a paisagem do lado de fora, tentava cochilar, porém sem sucesso, estranhando o movimento do trem.
- Se precisar de algo, senhor, é só dizer – Moreira tentava novamente alguma aproximação.
Artur apenas sinalizou com a cabeça, enquanto olhava pela janela, entretido com a paisagem que se formava com a vegetação.
- Você já havia viajado de trem antes, Moreira? – Artur perguntou, parecendo ter se cansado do que via.
- Não, senhor.
- Você me parece preocupado. Está com medo?
- Não, senhor. Só estou pensando.
- Por que não me diz no que está pensando Moreira? Talvez o tempo passe um pouco mais rápido se conversarmos – Moreira arregalou os olhos, surpreso com a proposta do rapaz, que em todos aqueles anos não lhe havia feito nenhuma pergunta parecida, e sentiu-se importante.
- Bem... é... Eu pensava na minha família.
- Você tem família? Não sabia – Artur olhou surpreso para Moreira.
- Na verdade, não tenho. Estava lembrando do passado, minha mãe... meu irmão.
- Onde eles estão agora?
- Morreram, já faz muito tempo.
- Não sabia – “obviamente que não”, pensou Moreira. – Posso saber o que houve com eles? – Indagou novamente Artur.
- Minha mãe adoeceu quando eu era adolescente. Alguns dos nossos vizinhos diziam que não era nada grave. Mas nunca conseguimos um médico. Na verdade, ninguém ali conseguia falar com médicos.
- Por quê?
- Porque éramos pobres, e negros.
- Nossa... – aquelas palavras comoveram Artur. Amanda não era a única pessoa doente no mundo. – E seu irmão?
- Foi assassinado quando voltava do trabalho. Ele entregava jornais.
- E descobriram quem o matou?
- Rum... jamais investigaram. Quem se importa com a morte de um negro pobre?
- E seu pai?
- Não tive pai, mas padrasto. Ele abandonou minha mãe depois que meu irmão nasceu.
- Sinto muito, Moreira.
Artur sentiu-se um pouco envergonhado, e egoísta, com a forma como reagira diante da notícia da doença de Amanda, quando mal a conhecia, enquanto Moreira estava ali ao seu lado, com motivos de sobra para lamentar. Ficou curioso por saber mais da vida daquele homem, mas teve vergonha de perguntar.
Novamente voltou-se para a janela, como se quisesse ver o que estava lá fora. Na verdade, estava tentando fugir daquela realidade, tão distante do seu dia-a-dia, quando o único sacrifício que fazia era o de acordar cedo para ir à faculdade. Até que se lembrou de que todos os empregados da casa sempre estavam a postos para o trabalho antes do amanhecer, enquanto ainda dormia, e mesmo isso lhe causou constrangimento.
Passou algum tempo fingindo estar entretido com a paisagem, tentando mergulhar nos mesmos pensamentos de antes. O que diria a Amanda quando a encontrasse? Diria que a amava? E se ela já estivesse bem, ou tudo não passasse de uma brincadeira? Cogitar esta última hipótese deixou-o ainda mais perturbado. As palavras de Moreira repetiam-se na sua mente, como um eco. Mas ninguém o havia acusado de nada. Fora apenas uma conversa qualquer. Por que se preocupar? Nunca havia feito mal a ninguém, nem destratado nenhum dos empregados da casa, muito menos aquele homem de pele escura e semblante triste e sofrido.
- Moreira. Moreira!
Moreira estava quase dormindo, já adaptado ao movimento do trem. Virou levemente a cabeça para Artur, com os olhos entre abertos.
- O senhor falou?
- Você é feliz?
- Como, senhor?
- Você é feliz, trabalhando lá em casa?
- Creio que não poderei responder esta pergunta, senhor.
- Por que não?
- Bem... posso dizer que estou em um lugar bem melhor que em qualquer outro que já tenha vivido.
- Mas sua resposta não é só isso. Porque não experimenta dizer o que realmente pensa, aí saberemos se acredito ou não.
Moreira meditou um pouco. Lembrou-se do passado novamente, procurou bem as palavras e disse:
- Aprendi a estar contente em toda e qualquer circunstância. Isso não depende do que eu tenho.
- Então você não ficaria mais feliz se meu pai dissesse que vai te dar um aumento, ou infeliz se disse que vai demiti-lo?
- Eu ficaria triste se seu pai me demitisse, não infeliz. Felicidade não depende dessas coisas.
- Diga isso para quem não tem emprego ou que comer.
- Eu sei o que é não ter o que comer.
- Desculpe o comentário. Mas não posso deixar de discordar de sua noção de felicidade.
- Eu sei disso. Por isso disse que não entenderia.
- Não concordar não significa não entender.
- “Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados. Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos”.
- Que palavras são essas?
- Estão na Bíblia.
- Acho bom mesmo pararmos com essa conversa por aqui. Você tinha razão quando disse que eu não entenderia. Não dá para discutir racionalmente quando a Bíblia é usada como argumento. Sem ofensas.
- Sim senhor. Peço desculpas se pareci audacioso.
Artur ficou ainda mais confuso com aquelas respostas. Preferiu não fazer mais nenhuma pergunta. À certa altura precisaram trocar de trem, já em Minas Gerais. Desceram e sentaram-se em um banco de cimento, enquanto aguardavam pelo trem que os levaria até a cidade mais próxima de onde Amanda morava.
De repente Artur começou a rir sozinho, lembrando-se da festa, e de como ele e Celsinho haviam caído daquele banco de cimento, muito parecido com aquele em que se encontrava agora. Moreira sentiu vontade de perguntar qual era o motivo do riso, mas conteve-se.
Durante o restante da viagem, Artur permaneceu calado, pensativo. Estava ansioso por chegar à casa de Amanda. Temia ser tarde demais. Talvez ela houvesse enviado aquela carta duas ou três semanas antes. Talvez mais. Isto atormentava sua mente.
Um táxi os conduziu da última estação de trem até a cidade em que Amanda morava. Após algum tempo de procura, acharam o local. Artur negociou com o taxista para que os aguardasse.
- É aqui, Moreia – “Rua das Oliveiras”, estava escrito numa placa improvisada pregada na parede de uma casa na esquina da rua.
- Sim, senhor Artur. Chegamos.
Caminharam lentamente, observando a numeração das casas.
- 85, 95... É aquela. Número 105 – Artur suava de tanta ansiedade.
- O que o senhor está esperando para bater? – perguntou Moreira, percebendo a hesitação de Artur.
- Talvez não tenha sido uma boa idéia ter vindo até aqui.
- O senhor só saberá se bater.
Artur deu mais dois passos e bateu levemente na porta algumas vezes. Mas não houve resposta. Então bateu mais forte.
- Amanda! Amanda! – chamava em voz alta.
Ouviu-se um barulho dentro da casa, e logo a porta se abriu. Era uma senhora idosa do lado de dentro.
- Com quem querem falar?
- Bom dia. Amanda está?
- Quem?
- Amanda.
- Fernanda? Não mora nenhuma Fernanda aqui, moço – Moreira deixou escapar um sorriso.
- É Amanda, senhora. A-man-da – repetiu Artur pausadamente e já demonstrando impaciência.
- Ah! Amanda.
- Isso mesmo. Ela se encontra?
- Não, não mora nenhuma Amanda aqui.
Então a porta se abriu mais um pouco e um senhor de cabelos grisalhos apareceu. Cumprimentou-os gentilmente e, saindo para fora, disse:
- Perdoem Élen. Ela não escuta muito bem. Nós compramos esta casa há três semanas. Talvez a moça que você está procurando, essa tal de Amanda, fosse uma das duas filhas do casal que morava aqui antes de nós.
- E o senhor sabe para onde se mudaram? Deixaram algum endereço?
- Não. Sinto muito. Disseram apenas que estavam de mudança para Belo Horizonte, para tratar da doença da filha. Uma das filhas parecia estar bastante doente.
- Droga! Não é possível! Viemos de tão longe... – esbravejou Artur.
- Vocês gostariam de entrar? Podemos lhes servir um chá.
- Não, senhor, muito obrigado. Devemos voltar imediatamente – disse Moreira.
A viagem de volta foi ainda mais silenciosa que a primeira. Artur estava visivelmente transtornado. Não entendia como Amanda teria se mudado sem lhe avisar nada. Talvez alguma carta ainda estivesse para chegar. E se já houvesse chegado?
Na primeira estação em que o trem parou, Artur ligou para casa, a fim de saber se alguma correspondência havia chegado. Mas a resposta de dona Aurélia foi negativa. Porém Artur ainda mantinha as esperanças. O restante da viagem transcorreu tranquilamente.
Dia após dia Artur aguardava ansiosamente o carteiro, a ponto de abordá-lo para saber se não estava esquecendo de nenhuma carta.
À medida que o tempo passava, o jovem rapaz ficava cada vez mais triste e deprimido. Ainda assim conseguiu passar em todas as cadeiras do semestre. Mas a tristeza lhe havia roubado por completo a vontade de viver.
Ah, que triste... Mas eu amei o toque de comédia. Certa vez, uma amiga me disse que os leitores adoram que lhes façam rir; é verdade. ;)
ResponderExcluirTentarei ler mais um capítulo ainda hoje, enquanto asso um bolo. =P
ai, que curiosidade! Que cidade misteriosa é essa onde ela morava? Não seria perto de BH? Por que Artur não foi para BH atrás dela?! Ai, que ansiedade!
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